quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Uma outra Macabea,

nascida num sertão - donde mesmo? - perdido na secura nordestina, sem altivez para pronunciar o próprio nome, falta da altivez de ser a si. Filha de uma mulher comum ao mundo, que mais crê na crendice dos cochichos do que na fé de quem persegue a esperança como fosse a última folha duma árvore semi-morta. Maria-sem-rosto. Enquanto o mundo era feito de Marias que iam com as outras, ela nem tinha, ao menos, à uma outra.

Vida de sertanejo é dura, sabe? É chuva pouca, esperança muita, desilusão cotidiana. É a roça que não cresce, o tostão que some, o povo sofrido sem bóia - fria ou não, que diferença?

Ela só queria menos. Menos secura. Menos pobreza. Menos açoite da vida. A voz do homem do rádio era bonita, dava vontade de dançar, mesmo na sua sem-gracez, uma valsa inventada na hora, cada vez que ouvia o anúncio do programa das curiosidades. Se ela ouvia? Pois sim. Sem escutar. Que aquela voz, de veludo fino, era mais alvo de curiosidade do que qualquer outra curiosidade dita. E, ela tinha certeza, se passasse aquela batom barato, e tão vermelho, encontraria o dono daquela voz, e passariam a noite, no bar do porto. Ele, contando curiosidades sobre a vida e o mundo. Ela, viajando sobre mundos irreais e vidas imaginadas na hora.

Mas vinha aquele moço, e teimava em dizer que ela era exatamente o que aparentava ser: um
nada. Uma menina que tinha o nome de doença de pele, que chamava a atenção pela sua falta de sal, que ouvia um rádio velho num sábado à noite, enquanto todos se divertiam numa danceteria qualquer. Cruéis, as palavras deste moço. Vazio, o sentimento daquela Macabéa. Tinha pouca consciência de si; sabia que existia. Viver era outra história, daquelas de radionovela. Rádio, de novo. Olhou dentro da bolsa, o batom não estava lá. Talvez fosse por isso que tudo estivesse dando errado. Se estivesse com a boca vermelha, cor de gente respeitada e importante, ele estaria lhe beijando ao invés de bater com as palavras.

Voltou para casa, no horário do programa de curiosidades. As cartomantes têm modos de adivinhar a sorte. Sorte. Uma palavra mágica para uma menina sem posse de si. Não ouviu o porém, não muito confiáveis que completava a frase. Iria à cartomante no dia seguinte.

E, agora, estava lá, deitada em no asfalto, sob um carro. Porra, como que essa menina foi aparecer assim? O mundo rodava entre quatro pneus; a Mainha pedindo que ela não saísse de casa, porque não saberia viver no mundo, o moço falando de sua inutilidade, a voz aveludada do homem do rádio, que não escutaria nunca, nunca mais. Ah, agora encontraria um lugar em que não precisaria do batom vermelho para ser. Fora. Fora deste mundo.

Se o mundo é mesmo parecido com o que vejo
Prefiro acreditar no mundo do meu jeito.
(Legião Urbana - Eu era um lobisomem juvenil)

8 comentários:

Luísa Chaves disse...

adorei! me fez refletir em muitas coisas.

meus parabens, é maravilhoso MESMO!

beijos ;*

Anônimo disse...

Lindo!
Coitada de todas nós Macabeas...
que achamos que temos o mundo na mão... mas na verdade somos apenas mais uma...alias.. sortuda era Macabea... sabia o que era de verdade, e com isso ainda viajava para fora desse mundo!

amei!!

Beijooss

Pedro Freire disse...

Excelente! Fazia tempo que eu não passava por aqui Sam, mas já contava com a qualidade de textos que eu encontraria.

Adorei a complexidade do narrador e da história. Um dos melhores que eu já li aqui.

Beijosssss

Unknown disse...

nossa querida, cada vez melhor. Fazia um tempo que não aprecia aqui, imperdoável. bjusss

Jéssica Trabuco disse...

"Prefiro acreditar no mundo do meu jeito" Renato Russo era o cara *--*

Esse texto me fez lembrar o livro "vidas Secas" que retrata a vida sofrida do sertão, não sei se já leu, é de Graciliano Ramos.

João Bertonie disse...

mano, mara. eu nao paro de reler o livro de lispector {:

Érica Ferro disse...

E quando as palavras nos esmurram, é melhor entrar no nosso mundo e ficar por lá mesmo.

Ah, cara... Você é sempre tão Clarice, entende?
Não sei, sou tua fã.

Beijo.

Marina Menezes disse...

Sam,
texto genial. Você escreve como uma jornalista experiente, com palavras bem escolhidas e enredos que passeiam entre pensamentos e acontecimentos.
Como a Erica Ferro disse, você me lembra a Clarice Lispector.
Parabéns pelo seu sucesso, Sam. Estou com saudades de você no Hotel de Papelão, junto com o Bertonie :O
Beijos ;*