sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Restos

Tinha mania de guardar coisas. Coisas? Tralhas. Restos. Pedaços que eram partes de seu inteiro: lembravam o Eu de outrora, tão menos que o Eu de agora, tão inexperiente diante do Eu futuro, promissor e sábio. Viveu anos dessas retrospectivas e viagens solitárias ao passado; chegava do trabalho e abria as caixas – enormes! – completamente preenchidas por fotografias, cartas e papéis de toda sorte. Fazia um café, punha os discos – de uma época que ainda valia a pena comprar discos – e dançava com suas memórias. Era o colegial, a faculdade, os amigos que iam e vinham, os namorados ao longo dos anos. Seu cotidiano era uma verdadeira colcha de retalhos, repleta por pessoas em doses homeopáticas. Nenhum de seus amigos, namorados ou conhecidos durou mais do que o espaço a ser preenchido pela lembrança. Não havia tempo de saber se a memória final seria boa ou ruim.

Seu redemoinho interior sugava e expelia pedaços da sua vida mais rápido do que sua mente poderia processar. Era um Eu tão instável e mutilado que tornava-se impossível manter algo, por menor que fosse. Quando dava por si, já substituíra o elemento que lhe faltava por outro. Valor de uso ou troca? Não importava. Aprendera a conviver com a nostalgia do que não foi, dos delírios de uma imaginação que nunca aprendera a dar lugar à realidade dos fatos; a imagem de uma presença representou mais do que seu conteúdo.

Tirava fotos, pra lembrar depois; do quê, meu Deus? Era tudo tão superficial que, ao olhá-las, qualquer sentimento se convertia a um vazio sem fim. O que sentira naquele momento? O que aquele sorriso representava? O que gerou aquele encontro? Como saber! Ela tinha fotos, não vidas; antes de sentir, ela apenas visualizava – e era uma imagem desfocada, pouco nítida, cujo significado durava segundos e esvaía-se ao menor pensar.

Naquele suposto futuro, a tal sabedoria esperada não viera. Na sua instabilidade, quis ser ser outras sendo ela mesma. O seu Eu de ontem e hoje era o mesmo: inerte e perdido.

No fim, ela guardava só partes do mundo. De si e de tantos outros que, espalhados, lhe deixaram apenas um holograma pra servir de recordação. Partes? Restos. Não se pode ter um pedaço se nunca teve um inteiro.

4 comentários:

Pedro Ricelly disse...

Me pergunto se conheço alguém já teve um inteiro.

Um beijo.

Larissa disse...

eu tô numa fase extremamente nostálgica, talvez por ser uma nova fase na minha vida. Esse ano começou, parece que passei de adolescente pra adulta ali, naquele 3, 2, 1... da virada do ano se liga? Lindo texto, como sempre. Continue por aqui! ;)

Anne Beatriz disse...

Eu vivo assim, guardando restos de coisas que passaram, que acabaram, mas que ficaram para a memória. Os restos são para se certificar de que na memória vai continuar, mesmo que talvez não seja tão saudável fazer isso.

mente inconstante disse...

"Não se pode ter um pedaço se nunca teve um inteiro."
Adorei esse final! :)