sábado, 11 de julho de 2009

Bilhete de loteria

- Todo dia é sempre igual...

A mulher pragueja. Ele tem uma vontade sobre-humana de que o teto caia sobre sua língua - só sobre esta, afinal, ainda precisa das mãos para cozinhar.

No jornal diário que assistia, a realidade manipulada estava estampada. Que viesse daquele jeito, ele não queria saber. Vindo a aposentadoria no início do mês, a comida na hora que sentisse fome e as camisas lavadas e passadas, tudo certo. Nunca precisou mais que isso.

Oras, mas e a mulher? Era um presente da vida, pelos anos de esforço; agora, um presente de grego. Rugas, varizes, os quilos que ela tentava perder com dietas estúpidas. Ela, em si, estúpida.

Ah, e os filhos!, rebentos para conter a ânsia familiar de herdeiros, molecotes puxando estilingue e matar pássaro, todos uns ingratos. Meninos, - ainda se houvesse uma menina para cozinhar! - hoje homens. Bestas. Um metido a idealista, outro a intelectual, outro a aventureiro. Bastasse casar: o ciclo casa-mulher-trabalho tomava conta de suas cabeças e esqueciam que existia aquele pai, de idade avançada. Nem pros jogos de domingo aparecem mais. Nenhum agradeceu todos os anos aguentando o sol forte, a luta diária, os insultos, o puto do patrão. Não, eles não reconheceriam nem se esfregasse em seus rostos.

Droga, a mulher não desliga a porra da televisão.

- Mas você não pod...

- Shhhh! Vão anunciar o número da loto!

Não bastasse a comida sem gosto e a patacoada pseudo jornalística que lhe obrigava a assistir, agora gastava o dinheiro que não tinham na loteria. Queria dinheiro, que trabalhasse! Não que tivesse acumulado muito. Mas era o suficiente para ter algum conforto. Se ela pensava que iria usar seu dinheiro desta forma, estava muito...

- Ganhei! Ganhei! Dois milhões e seiscentos mil acumulados!

A mulher, esquecendo a dor nas costas e as varizes, pulava. Não. Não poderia ter acontecido com eles.

- Ora, o que é isso? Ganhei, ganhamos! Comemora! Isso nunca aconteceu, talvez não aconteça nunca mais. Deus finalmente ouviu minhas preces...

Ele, antes cético, estava boquiaberto. Ele, milionário? José. O nome nem combinava com o título. Ouviu tantas vezes e agora, José?, em tom de brincadeira. Ele se fazia a pergunta de outrora. E agora?

A mulher ignorando o entrave em que se encontrava o marido, ainda estava em êxtase. Ele a observou, demoradamente. Ainda persistia – ainda que pouco – aquilo que vira na companheira, quando moços. Os cabelos castanhos, quase pretos, balançando a cada impulso que dava para um novo salto, os dentes imaculadamente brancos, os olhos de um azul-céu. Sim, ela era bonita, à sua maneira. E era sua. Apenas sua, ainda que cozinhasse diferente do modo que gostava. Porém, isso seria resolvido quando contratassem uma empregada, daquelas de cama, mesa e banho. Cama...

- Repetindo: quatro, nove, oito, três, nove, cinqüenta e seis.

- Cinqüenta e seis?

O olho da mulher escureceu. Ele piscou.

- O que tá nesse bilhete?

- Quarenta e seis.

Pronto. A atmosfera psicodélica de felicidade e otimismo desaparecera num átimo de segundo. De repente, os dentes da mulher voltaram a ser amarelos, os cabelos esbranquiçados e os olhos, azul-desbotados. A empregada foi-se para um universo qualquer. E a comida, essa sim ficaria pior do que nunca nesta noite.

27 comentários:

Jerri Dias disse...

Adorei!

Muito divertido e sarcátisco!

Fiz um roteiro pra curta-metragem sobre ganhar na loteria. Espero que eu consiga fazer o filme...

Beijo.

amanda lima disse...

Bem sagaz, haha.
Gostei mesmo. :)

Beeijo.

Vanessa Cristina disse...

Ele devia ter ficado feliz. Fez uma quina ainda :D


Beeijo
:*

Daninha disse...

Ainda bem que eles nao ficaram ricos, historias que terminam com finais que nao esperamos sao bem mais legais!
OAPSKASOPAKPSOAPSK
Beijos

Jaya Magalhães disse...

Daí que eu tava folheando a Capricho de minha prima, e vi um texto teu. Aquele, que você fala de ser vegetariana. Rá! Eu gritei: eu conheço elaaaaaaaaaaaaaaa. Eu leio o blog dela, tchan-nan-nan.

Huahauahuahuuahauhauha.

Vim só pra dizer isso. Depois volto.

Beijo, Saaaaaaaaaaaaaaaam!

João Bertonie disse...

Oi, Samia. Casa comigo? nnnnnnn
É por isso que eu te adoro. Sua inteligência é demais para mim! Num güento.
Imagina você ganhar na loteria por um minuto e meio e de repente conferir a cartela a ver que tá errado KKK É mágoa. Súbito, o inebriante ar de alegria de início com a surpresa, some. E tudo vira treva. Dez vezes pior. Atoron o perigon.
Meus contos/crônicas tem esse mesmo 'estilo' teu, sacas? Um final inverso e mais real. A gente pode se unir e fazer um livro maior que Guerra e Paz, qtal? nnnnn



beigos mil

Elton Alves do Nascimento disse...

Que dó, é o que a ilusão faz com as pessoas...

Luna disse...

Nosssaaaaaaaaaaaaaaa

Coitada da mulher....

Mas bem que éssaa é a fatídiga realidade...

Tudo perde a grassa conforme o tempo...

O Agora JOsé? Foi incrivel...

Ainda bem q existe pessoas que ainda leem poesia hoje em dia...

Parabéns adorei!!!

Beijos... Luna!

Nathália Monte ;D disse...

bem engraçada...kkkkk

vc continua escrevendo como sempre.de forma estupenda..
beijinhO chuchu

Almeida José disse...

Ótimo texto, as historias de loteria são as melhores.
O pior é que pra muita gente o dinheiro traz é azar.

Até que minha familia ja ganhou uma vez nas lotecas da vida, deu pra comprar uns moveis novos e só!

Minha tia é uma dessas que bota a megasena no pé da santa e tudo mais!


É, loteria é que nem aquele jogo de tabuleiro, War, simplesmente destroi lares.

Até mais,

Caique Almeida
http://rumborasocialclube.blogspot.com/

Soraia Alves disse...

Ai..adorei!

Isa disse...

hahaha, adorei!
Mas por falar nisso bem que eu podia ganhar na loteria ou algo mágico do tipo hein?

Anônimo disse...

E a grana sumiu. Hahahahahahaha, sinto-me assim todos os dias, mas não com o dinheiro, rs.

Nathália E. disse...

Hahahaha
Depois dizem que só mulher é que pensa no dinheiro em primeiro lugar.
Adorei o texto!

Anônimo disse...

Conforme o tempo vai passando as coisas vão ficando ruins mesmo, esse velho é bom rabugento de qualquer forma! uahsuahs
Adorei o texto, estou seguindo o blog!


Beeijos! =*

Simone Nascimento disse...

É a grana!!!! ficamos tão iludidos com ela, somos capazes de nos valorizar um pouco mais quando a temos em mãos...mais nem tudo são flores e esse história acaba e começa como muitas outras no nosso pais, a ilusão de comprar bilhetes para sair da vida que se leva e a velha frase da qual até as mulheres falam como se não atingice a elas mesmas " ainda se houvesse uma menina para cozinhar!". Um País rodiado de Tabu's onde apenas mulheres conzinham e que todo pobre se ilude em melhorar a vida na espera de Um BILHETE PREMIADO!

fui..
tá lindo o seu blog, lindos textos!

Thaís A. disse...

AAAH, eu ficaria tão brava!

UAHEUSAHE, adorei Sam :)

Ana disse...

Alegri de pobre dura pouco :D ahahahahha

E a velhice é triste demais pra mim, quando for velha quero ir nos bailes da vida, pra ser eternamente jovem por dentro :D

Ai, você escreve tão bem *-*

Muni disse...

haha, o que um bilhete de loteria não pode fazer com o modo de ver as coisas :D

:*

teh +

o/*

Bill Falcão disse...

Muito bem bolado, Sam! Digno de um Fernando Sabino, um Rubem Fonseca, esses cobras aí! Gostei meeessmooo!!
Bjoooooooo!!!!!!!!!!

Crispi. disse...

Muito Bom mesmo!
Eu queria escrever sobre loteria, sobre como eu só ganho dois reais quando eu jogo.. ahaha
beijos!

Marcela disse...

Nem tudo o que a gente espera, acontece /fato.
E sem final feliz... eu gosto assim!!

Eri disse...

NOssa!
que triste!
é real?

Mariana Guerra disse...

Hey!
Tenho uns selinhos no meu blog para você :)

Beijos

Ryan Zamperlini disse...

Nossaaaaa, tadinho! Eu fiquei feliz e empolgado com o desenvolvimento da história quando PÁ...

ASYTDAYUSFDYUTAF

Adorei!

Katharine B. disse...

Amo esse blog, por isso deixei um selo pra tu la no meu!!!
passa lá e vê!

beijo, parabéns pelo trabalho aqui.

Vitóriaㅤ disse...

Oii...
Amei seu blog! Muito lindo, o post ta mara ;D
Dps visita o meu blog e comenta lá ?
CauseNothingElseIsReal.blogspot.com
Vaaleu *-*