quinta-feira, 2 de julho de 2009

Crônico

- Já acabei! Ficou bom?

Eu tiro os fones do ouvido e os olhos do livro de sociologia. Minha cabeça entre as mil relações entre Marx e Lênin. Xingo mentalmente o professor, por me fazer passar mais um sábado a noite em casa, fazendo um trabalho infindável.

A mana puxa a roupa, pedindo atenção. Penso em mandá-la fazer a lição de matemática, já que a mãe disse que estava de recuperação. Falta de estudar, lógico. As palavras estão na ponta da língua. É um, é dois...

- Acho que não ficou boa. O nome é besta. Ninguém vai querer ler. Eu vou apagar e escrever de novo.

Ela se prepara pra sair do quarto. Eu engulo as palavras, antes prontas pra sair. Estão amargas, amarguradas, azedas. O gosto, em certo momento, desvia-se da rota e vai parar no peito, onde se torna incômodo. Já não é mais gosto. É sentimento, consciência pesada, sensação ruim. Pearl Jam, dos fones de ouvido, desafina. Lênin volta pro seu mausoléu e a barba de Marx destoa. Do mesmo jeito que o olhar da mana descoloriu.

- Volta aqui. Eu quero ver.

A mana volta, com o sorriso mais bonito do mundo. Sorrio também, reflexo ou espontaneidade, seguro a folha de papel.

Redação de escola. A professora mandou escrever uma crônica. Inevitavelmente, a memória viajou. Voltei à menina de maria-chiquinha, que fez cara de como é? quando a professora falou da tal da crônica. Morde? É de comer? Eu lá sei fazer isso, tia!

A professora ria com gosto. Tinha um rosto de menina e um ar de alegria. Deve ser bom ser professora de criança. Ver os traços de descoberta, a surpresa, o desespero e, por fim, a expressão de conquista por superar a si mesma.

Chacoalhando a cabeça para me livrar do devaneio nostálgico, voltei ao texto. A letra dela é a minha, com exceção daquele e disforme. Faz mal não. A menina é boa de letra, como diria essa minha professora-moça. Quem mergulha nas palavras – um tanto simples, ainda – sente a imaginação infantil, a grafite amanhecendo no papel, as rugas na testa quando se esquecia a grafia correta de uma palavra. A pressa de fazer logo e, após, o arrependimento, porque quer mostrar que é boa. Após, a ciranda das brigas infantis, o reconhecimento da volatilidade da pseudofúria, o tempo que não pode e nem deve ser perdido. A paz, uma nova briga, paz novamente, ciclo finito-eterno de uma criança que vai crescer um dia desses...

Sorri.

- Tá ótima. Você é boa de letra. Só tem uns errinhos de português que tem que corrigir. Relaxa, isso eu arrumo agora.

- Que bom. Fiquei com medo de tá ruim. Num tô atrapalhando?

- Tá nada. Eu corrijo rápido e volto a estudar.

A pequena se faz grande nas palavras, penso, rindo involuntariamente. Ela pulou no meu colo, beijou minhas bochechas num estalo que lhe fez rir gostosamente. Eu, sorria. Por dentro. Agora eu entendi. A professora–menina me uma doença, um vírus. Este, por sua vez, partiu de dentro de mim para contaminar quem se mostrasse um bom hospedeiro.

O vírus continua a sua jornada. Brota do lápis, faz nascer a lágrima, o sorriso, o amor. Unifica. Conhece sem entender e entende o que não conhece. Incurável e crônico.

13 comentários:

Patrícia disse...

Tem selim pra vc lá no blog. ;)

Unknown disse...

"O vírus continua a sua jornada. Brota do lápis, faz nascer a lágrima, o sorriso, o amor."

bjus

Don't Speak disse...

'O vírus continua a sua jornada. Brota do lápis, faz nascer a lágrima, o sorriso, o amor. Unifica. Conhece sem entender e entende o que não conhece. Sem cura. E crônico, sempre crônico.'

Perfeito.

Beijo.

:: Fatima :: disse...

'O virus continua sua jornada. Brota do lapis,faz nascer a lagrima, o sorriso,o amor.'


Lindo texto'


BjOs!


=***

Dias disse...

Que bonito o que vc escreve
Eu acho que te disse isso alguma vez
hauhauhauha

Henrique Miné disse...

olha que eu gosto de solciologia.

Mas definitivamente, troca-la por esse momento com sua irmã valeu a pena.

Não sei porque diabos os seus textos me deixam com uma puta nostalgia adoro isso, ahhaa.



Beeeeijos. ;D

Filipe Garcia disse...

Sam,

as crianças. Elas sempre nos ensinam alguma coisa. E eu acho isso estranho. Mágico também. Não que elas sejam seres sábios. São simples. São seres bonitos. Nós, complicados e complexos que somos, percebemos nos olhos dela um convite. Sim, algo do tipo: "Minha poesia é tão mais leve que a sua."

Um beijo!

Tyler Bazz disse...

Se bobear vira blogueira...

Elton Alves do Nascimento disse...

Muito bom post, viajei lendo... :P

Cissa disse...

que lindo!!

Luana Mendes disse...

Espero que você curta, super heroína.
http://diariodeumcrepusculo.blogspot.com/2009/07/e-ela-era-uma-super-heroina.html

;*

Graziela C. Drago K. Zeligara disse...

Rock e bossa!

Adorei o nome do seu blog.Perfeito.

Me Identifiquei bastante!

"o reconhecimento da volatilidade da pseudofúria"...

Fofíssimo esse texto, traz a inocência de toda criança e o despertar que essa causa naquela qeu dorme em nós. c:

May - The New Cat disse...

Adorei este blog, tu escreve muito bem, são palavras com sentimento, forma e sabor, entram na alma, parabéns para todos os textos, inclusive o da mãe e olha que tu acertou em cheio, sou mãe da Mayra e te digo é bem assim mesmo...Beijos e mais uma vez parabéns, da gosto de ler teu blog.
Magda